sexta-feira, 7 de março de 2014

QUE MUDAMOS??

Prefácio à quarta edição dos “ Contos da Montanha”


Depois de muitos anos de desterro, regressam novamente ao torrão natal os heróis deste atribulado livro. Nesta época em que tantos portugueses de carne e osso emigraram por fome de pão, exilaram-se eles, lusitanos de papel e tinta, por falta de liberdade.
Enfarpelados num duro surrobeco de embarcadiços, lá se foram afoitamente em demanda do Brasil, o seio sempre acolhedor das nossas aflições. E ali viveram, generosamente acarinhados assistidos de longe pela ternura correctiva do autor. Voltam agora ao berço, roídos de saudade. E não é sem apreensão que os vejo pisar, já menos toscos de aparência o amado chão de origem. É que muita água correu sob a ponte desde que se ausentaram. Quatro décadas de opressão desfiguraram completamente a paisagem do país. A humana e a outra. Velhos desamparados, adultos desiludidos, jovens revoltados – num palco de desolação. Almas amarfanhadas e terras em pousio. Que alento poderá receber dum ambiente assim, uma esperança de torna-viagem? Mas a pátria é um íman, mesmo quando a universalidade do homem, como neste preciso momento, sai finalmente dos limites tacanhos do planeta. Poucos resistem à sua atracção ao verem-se longe dela, seja qual for a órbita em que se movam. Até os seus filhos de ficção. Por mais fortuna que tenham pelo mundo a cabo, é com o ninho onde nasceram que sonham noite e dia. É que só nele se exprimem correctamente, estão cetos os seus gestos, são realmente quem são. De maneira que não me atrevi a contrariar a vinda das minhas humildes criaturas, como a prudência talvez aconselhasse. Pelo contrário: favoreci-a. Pode ser que o exemplo seja seguido, e o êxodo, que empobreceu a nação, comece a fazer-se em sentido inverso, e as nossas misérias e tristezas mudem de fisionomia. Portugal necessita urgentemente de ser repovoado.

                                                               S. Martinho de Anta, Natal de 1968

                                                                                        Miguel Torga

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