A PASSAGEM
Era Novembro e chovia, chovia intensamente.
Como de costume nas últimas semanas o Domingo era dedicado a visitar
os pais, no apartamento onde vivia localizado numa urbanização incaracterística
nos limites da cidade, mais pensado em arrumar pessoas do que em acolher
famílias, não se via ninguém na rua.
No carro sentou-se cansada ao lado do marido, um cansaço mais mental
que físico que a impregnava intensamente um sufoco de que não se conseguia
libertar.
Atrás, o filho mais novo bem preso à cadeira visivelmente incomodado
pela liberdade do irmão, protestava sem parar.
Encostou-se no banco e fechou os olhos, o marido virou e perguntou:
Estas cansada?
Acenou com a cabeça que não, enquanto pelo espirito passaram as
últimas semanas, uma em especial
Naquele dia a mãe começara a falar, tão estranhamente que não esperava
nem respostas nem reações embora se lhe dirigisse, pois os olhos estavam fixos
nela, sentia que não a chegava a ouvir.
Num recomeço a mãe recostou-se no espaldar da sua cadeira, enquanto tinha
falado as costas um pouco separadas do encosto, como quando alguém intervém
publicamente numa tertúlia, ou numa orquestra um instrumentista antes de chegar
a sua vez se ergue levemente na sua cadeira, atento tenso para não se perder da
harmonia, descansando as costas na sua nova posição para a surpreender com o
volume o tom e a teia de preocupações insuspeitas até então.
Recomeçou: Não fui capaz de vos educar, nem a ti nem aos teus irmãos,
não fiz a passagem do que aprendi da minha mãe, nada vale tudo o que sabes se
não entenderes a linguagem da natureza, a linguagem da terra.
As suas mãos desenhavam no espaço o gesto de quem rasgava a terra, um
estranho bailado vindo de tempos ancestrais, as palavras saiam como se fossem
definitivas as últimas as essenciais, havia urgência na sua voz.
Nesse dia não tinha compreendido, mas o pai já a alertara: A tua mãe
anda um pouco esquecida a médica de família marcou uma consulta para um
neurologista.
O médico chamou-a: É a filha mais velha? Sim; respondeu
Continuava de olhos fechados, sentiu o carro parar e ouviu o marido
dizer: Chegamos
Era Novembro e chovia, chovia abundantemente.
Lá fora a mãe com um regador, junto ao muro da casa ia regando as
pedras, com a aplicação de sempre.
Compreendeu então a urgência das palavras daquele dia, a mãe antes de
fazer a passagem para um mundo só dela, sentiu necessidade de lhe passar o
testemunho acumulado nos tempos. E chorou.
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