segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

SÓ SOU EXIGENTE POR QUEM TENHO AMIZADE

SÓ SOU EXIGENTE POR QUEM TENHO AMIZADE
Estou a exigir muito de ti? Quem te há-de exigir muito senão eu que sou teu amigo? Como amigo tenho o encargo de não te deixar amolecer, e esforçar-me-ei por o cumprir. Por mim, tu farás tudo o que puderes e sobretudo o que não puderes; porque só há pessoa humana quando se faz o impossível, o possível qualquer bicho faz.  Quando tu saltares e saltares bem, eu esperarei que saltes mais alto, poderá parecer que não me importarei que caias, mas estarei atento para que te levantes. Os fracos vieram para cair mas os fortes vieram para cair e recomeçar sorrindo. Sei que estarás a refilar contra mim e quem sabe desejar que eu fosse menos exigente e te pedisse menos, te deixasse repousar no comodismo, mas do repouso desejarias férias das férias farias vida de gato.

Tenho demasiada amizade por ti para não te alertar para isso, precisas de ter vida de lutadora, nem que seja vida de cão, lutar por uns ossos levar pontapés, ganharás robustez e encontrarás o teu verdadeiro destino. 

sábado, 15 de fevereiro de 2014

CRIANÇAS COM QUEM BRINQUEI

Crianças com quem brinquei (Crónica de fim de semana)
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           Recordo os últimos anos da década de cinquenta do século XX, os garotos que me acompanharam na escola primária, crianças que a vida flagelou, filhos de mães que pariam quase todos os anos e de pais que se emborrachavam quase todos os dias.
Vínhamos de muitos dos lugares da freguesia, uns descalços outros com chancas todos com uma côdea de pão duro. Todos não, havia o Jorginho filho do Sr. Lopes e da Dona Regina, com botas de nos fazer inveja e a quem nos intervalos das aulas, uma empregada da casa trazia uma merenda, uma coisa do outro mundo para nós. Aprendíamos a ler e a escrever, decorávamos rios e as serras de Portugal, as descobertas, batalhas e outras glórias do país, que nos negava tudo. Passávamos o dia numa escola onde chovia, compreendíamos mal porque se chamava Posto Escolar e porque é que a nossa Professora era Regente Escolar. O vento, a chuva entravam pelas janelas onde faltavam vidros mas mesmo assim melhor que a nossa casa, onde o chão era terra e por cima apenas telhas sem forro.
A primavera e o outono aliviavam os corpos da dureza do clima. A chuva não fazia grande mossa, era pouca a roupa e o corpo conhecia dias piores.
Aprendíamos os cognomes dos reis e os nomes dos filhos bastardos, o esqueleto humano até ao último osso. Muitos desistiram, o abandono escolar era enorme e a necessidade de começar cedo a trabalhar era imperativa. As raparigas iam para criadas de servir os rapazes para trolha, ou com alguma felicidade para tecelões, a têxtil era um emprego de prestígio tornava mais fácil arranjar namorada tinha-se direito à Caixa. Sair da escola a saber ler e escrever dava uma boa expectativa, permitia alimentar a esperança de ir para afinador, o máximo que nos era permitido sonhar. Entretanto o Jorginho vivia a sua vida e uma coisa curiosa só tinha uma irmã ao contrario da maioria de nós, e o seu pai apesar de não frequentar as tabernas constava-se que bebia bebidas “estrangeiras” , para nossa maior confusão havia alguns bébés que nasciam sem pai. Alguns mais espevitados diziam ao Jorginho que eram irmãos dele, não sei, soube depois que eram registados como filhos de pai incógnito.
Nenhum aluno era proposto a exame da 4.ª classe sem dividir e classificar as orações sem hesitação, e todos os alunos que acabaram eram propostos a exame.
Nos intervalos das aulas os rapazes corriam para a horta do senhor Remina e as raparigas para a do senhor Gusto Patas, ou vice-versa, já lá vão tantos anos, e a memória apenas guarda a parede junto à qual circulavam os meninos, colados, para não pisarem o milho ou as batatas, o feijão de estaca e as alfaces, mas evitando trazer nos pés as fezes próprias ou alheias. Curioso ao Jorginho era-lhe tolerado ou a utilização da retrete da Professora ou mesmo a ida a casa, ainda que isso implicasse uma demora mais prolongada.
Depois aproveitávamos o tempo que restava para jogar ao pião, dar pontapés na bola de trapos ou saltar o trinta arreia mosca (que me lembre o Zé Lourenço e o Merco Rolha partiram uma perna), enquanto as meninas disputavam o terreiro a jogar à macaca e a saltar a corda.
Recordo-me do nome de todos, mesmo daqueles que logo ao sair da escola, ou pouco mais a vida levou para outras terras. Lembro-me bem do Tone Barracão, meu colega de carteira que juntamente como o irmão apenas com onze anos deu o salto para França, lembro-me dos que foram vítimas da guerra do ultramar, dos que emigraram, mesmo daqueles que nunca mais vi. E também me lembro do Jorginho, que será feito dele? Viverá ainda? Lembrar-se -á  de nós?
Conhecerá finalmente as irmãs e irmãos incógnitos? Ou aqueles que com ele aprenderam a ler serão apenas uma lembrança ténue e pouco consistente?
É possível, afinal andou connosco mas não fazia parte de nós.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

A PASSAGEM


A PASSAGEM
Era Novembro e chovia, chovia intensamente.
Como de costume nas últimas semanas o Domingo era dedicado a visitar os pais, no apartamento onde vivia localizado numa urbanização incaracterística nos limites da cidade, mais pensado em arrumar pessoas do que em acolher famílias, não se via ninguém na rua.
No carro sentou-se cansada ao lado do marido, um cansaço mais mental que físico que a impregnava intensamente um sufoco de que não se conseguia libertar.
Atrás, o filho mais novo bem preso à cadeira visivelmente incomodado pela liberdade do irmão, protestava sem parar.
Encostou-se no banco e fechou os olhos, o marido virou e perguntou: Estas cansada?
Acenou com a cabeça que não, enquanto pelo espirito passaram as últimas semanas, uma em especial
Naquele dia a mãe começara a falar, tão estranhamente que não esperava nem respostas nem reações embora se lhe dirigisse, pois os olhos estavam fixos nela, sentia que não a chegava a ouvir.
Num recomeço a mãe recostou-se no espaldar da sua cadeira, enquanto tinha falado as costas um pouco separadas do encosto, como quando alguém intervém publicamente numa tertúlia, ou numa orquestra um instrumentista antes de chegar a sua vez se ergue levemente na sua cadeira, atento tenso para não se perder da harmonia, descansando as costas na sua nova posição para a surpreender com o volume o tom e a teia de preocupações insuspeitas até então.
Recomeçou: Não fui capaz de vos educar, nem a ti nem aos teus irmãos, não fiz a passagem do que aprendi da minha mãe, nada vale tudo o que sabes se não entenderes a linguagem da natureza, a linguagem da terra.
As suas mãos desenhavam no espaço o gesto de quem rasgava a terra, um estranho bailado vindo de tempos ancestrais, as palavras saiam como se fossem definitivas as últimas as essenciais, havia urgência na sua voz.
Nesse dia não tinha compreendido, mas o pai já a alertara: A tua mãe anda um pouco esquecida a médica de família marcou uma consulta para um neurologista.
O médico chamou-a: É a filha mais velha? Sim; respondeu
Continuava de olhos fechados, sentiu o carro parar e ouviu o marido dizer: Chegamos
Era Novembro e chovia, chovia abundantemente.
Lá fora a mãe com um regador, junto ao muro da casa ia regando as pedras, com a aplicação de sempre.

Compreendeu então a urgência das palavras daquele dia, a mãe antes de fazer a passagem para um mundo só dela, sentiu necessidade de lhe passar o testemunho acumulado nos tempos. E chorou.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

MISTÉRIO

MISTÉRIO

No mistério de uma noite sem luar,
Um enigma presente em parte incerta
Uma luz que tento descobrir com o olhar,
Que se esconde e a minha alma aperta


Tempos amargos que impedem de sonhar
Levam-me aos caminhos que não quero,
Entre desesperança, eu sempre espero
Encontrar o caminho a paz e lá chegar.


Chuva, neve e sol em cima dos telhados
E o sorriso de social na moldura,
Desvia os pensamentos mais ousados
De uma alma à beira da loucura.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Vazio

O que foi não mais existe; existe exactamente tão pouco quanto aquilo que nunca foi. Mas tudo que existe, no próximo momento, já foi. Consequentemente, algo pertencente ao presente, independentemente de quão fútil possa ser, é superior a algo importante pertencente ao passado; isso porque o primeiro é uma realidade, e está para o último como algo está para nada. Só a consciência de recomeços nos torna capazes de nos descobrir a nós próprios, não podemos mudar o passado pouco podemos interferir no futuro e o presente se escapa quase sempre entre o nosso agir e o nosso ideal pensado, que nos resta senão o assombro??                                     Um homem, para seu assombro, repentinamente torna-se consciente de sua existência após um estado de não-existência de muitos anos; vive por um breve período e então, novamente, retorna a um estado de não-existência por um tempo igualmente longo. Isso não pode ser verdade, diz ao seu coração; e mesmo com a rudeza das nossas mentes, sentimos algum tipo de pressentimento de que o Tempo é algo ideal em sua natureza. Que a transcendência se transmite pela densidade e intensidade do Tempo.